Quem são, na real, os seus heróis

Uma das minhas primeiras inquietações a respeito de “Jogos Vorazes” foi a falta de foco nas críticas; sabe-se que estão criticando a sociedade, de modo geral. Mas essa coisa de foco se torna um problemão na hora de analisar. Eu cheguei até a me perguntar se não era eu enxergando coisa demais, mas aí me deparei com a crítica do Pablo Vilaça sobre o primeiro filme e ele tratou da mesma coisa. Já é um reforço, né?


Pra vocês terem uma ideia, no texto anterior, chegamos a tratar das noções de política que a autora empregou nos livros, das implicações em se optar por uma protagonista feminina [assunto que acabou sendo deixado pra outra hora], discutimos os significados dos jogos e os vários tipos de opressão, ainda chegamos a comentar sobre a visão maniqueísta das sagas famosas no geral e como essa franquia lidou com a vilania como um conjunto de responsáveis e, por fim, como tributos tornam-se parte desse sistema. E tudo isso já está posto desde o primeiro livro.

Como eu havia dito, Peeta é responsável pela grande reviravolta dada no primeiro livro/filme. Imediatamente, podemos associar isso ao fato de que ele conseguiu gerar, pela primeira vez em 74 anos, dois sobreviventes. Tudo isso por ter sido capaz de jogar com o público. No texto do Vilaça [recomento fortemente que vocês leiam] ele verbaliza uma impressão mal formada que eu tive quando vi o filme: o caráter escapista que a capital emprega aos jogos; ela utiliza desses como a realização de experiências que faltam na vida cotidiana deles. São seres tão apáticos que precisam assistir a morte real de 23 adolescentes, anualmente, para experienciarem alguma emoção [a quem já está apontando o dedo na cara do fã de terror, mas vê direto uma temporada inteira de série, tenho más notícias: existem várias outras experiências mal-sucedidas que vocês podem estar tentando costurar em “Sense 8″, por exemplo]. Mas a grande sacada tida por Peeta é, na verdade, a mais óbvia: o público não aguentaria ver a sua provável única experiência romântica sendo violentada ao vivo e de forma sangrenta. Como resultado, os tributos viraram celebridades.


É nesse ponto que enxergamos uma virada ainda maior do que a vitória dos jogos: as pessoinhas por quem a capital não tinha empatia alguma se tornaram seus heróis e os tributos precisam dar às costas ao seu distrito e distribuir sorrisos para sustentar a fantasia da capital. Do contrário, as pessoas começariam a refletir quais eram as suas responsabilidades naquele sistema, então elas precisam de mais escapes para consumir. De repente, Katniss e Peeta se tornaram agentes de reforço do sistema que só fez mal a eles e ao seu povo e, paradoxalmente, incitadores de pequenas rebeldias, porque isso aparenta ser da natureza de Everdeen.

Paradoxalmente, Katniss se torna 2 tipos de heroína, uma para cada tipo de público, ainda que esteja, na mídia, apresentando a mesma imagem. E isso se traduz em uma crítica um tanto engajada com a fase atual do cinema voltado à adaptação dos heróis dos quadrinhos. Justamente por essa perspectiva do que é o herói e o que é o vilão. O herói é aquela criatura pura, desprovida de más intenções, e provida de um certo poder que ele usará para derrotar algum mal, geralmente, encarnado na figura do vilão - este tem características opostas e tem objetivos que são variantes de uma ordem [ou desordem] mundial, causada e governada por ele. E é aí que temos um problema: Katniss agora é parte do sistema que a oprimiu e ajudou a criar seres desprezíveis, como o presidente e toda aquela sociedade da capital; ela inclusive serve de palhaça pra eles (panem et circenses). Ou seja, além de não destruir o vilão, sem se corromper, ela acaba passando para o lado dele [de forma forçada, compreendamos, mas estamos falando de efeitos, não de causas]. Tudo isso faz da nova Katniss uma vilã? Ela, pelo menos, ainda realiza algumas atitudes transgressoras, após a fama. Mas e Peeta?


A resposta é óbvia: não. Mas é aí que percebemos o qual problemático é pensarmos o mundo sob esses dois conceitos, se não levarmos em conta os vários fatores que estão por trás de cada imagem [no caso, a imagem passada por cada pessoa]. Da mesma forma que, sem o acesso à história de vida dos personagens, Peeta, principalmente, mas Katniss também podem ser vistos como ajudantes do presidente na alienação da capital. E pior: em teoria, eles foram colocados naquela posição para pacificar a população dos distritos, de modo que estes não se revoltem contra o tal sistema. O seja, eles estão ali para fazer todas aquelas pessoas, das quais há muito pouco tempo eles também faziam parte, a digerirem aquelas injustiças. Quantos “vilões” [falo os da vida real mesmo, mas servem os ficcionais] não estiveram nesta mesma posição? E quantos oportunistas não se aproveitaram de situações semelhantes para posarem de heróis? Aqui no Brasil, foi o que mais aconteceu, esse ano.

Um último detalhe que passa despercebido na figura do herói, mas que “Jogos Vorazes” ajudou a expôr, é que ele é tido como a figura ficcional que impulsiona as pessoas a lutarem contra injustiças e ainda serem mais comprometidas com os seus objetivos. Isso é verdade, mas acontece que existem outras faces que não são discutidas, como, por exemplo, o conformismo que tais figuras geram nas pessoas [na vida real]: 1) de que as coisas estão correndo tudo bem ou sendo resolvidas pela simples presença heroica de algumas pessoas, sejam elas políticos, líderes religiosos, figuras rebeldes e transgressoras, como o tordo representa, ou quem quer que sejam; 2) elas desacreditam as pessoas da capacidade delas de realizarem qualquer coisa, baseadas nos superpoderes que elas não têm. E por favor, não me venham falar do Batman ou do Iron Man porque, para aquilo, precisa-se de um superpoder aquisitivo; o que não deixa de ser algo inacessível a grande maioria da população.


Resta saber se vamos tomar pequenas iniciativas que podem vir, ou não, a se tornar coisas grandes, ou se estamos esperando alguém resolver para nós os nossos problemas, já que que - supostamente - não nascemos habilitados para isso.

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