O espelho que reflete uma imagem difícil de lidar

Certamente, o trabalho com as referências de outros filmes do gênero e o uso do espaço mais trash dos slasher movies já não é mais alguma novidade. Quando a fórmula criada por Williamsom e Craven esgotou possibilidades - fato muito bem representado na intro de Scre4m -, grande parte dos filmes de terror resolveu apostar no óbvio como forma de mudar a lógica da surpresa final [você espera que será algo mais surpreendente e, de repente, acaba sendo surpreendido pela primeira possibilidade descartada], outra parte resolveu apelar para a violência gráfica (Jogos Mortais, por exemplo) e a outra seguiu para a formula do falso documentário [outra que já deu o que tinha que dar]. Todo mundo em pânico e, mais recentemente, Pânico 4 mostraram que a paródia e a metalinguagem ainda rendiam boas obras. E, de certa forma, impulsionaram novas tentativas. Scream Queens foi uma delas. E posso falar que essa série deu mais uns passos à frente com essa formula.


A série da Fox é sagaz, esperta e tem uma ironia tão fina que parte dos expectadores usuais de comédias e terror vai interpretar como um insulto à inteligencia deles [e mostrar que a ironia é eles acharem que são tão inteligentes e acima dela]. A série traz tantas piadas; e tantos diálogos de duplo sentido; e tantas referências faladas e embutidas; tantos suspeitos e, claro, tantas mortes, logo no primeiro episódio, que de início, me admirou a recepção negativa de parte das pessoas que conferiram.

Só pra vocês terem uma ideia, além das óbvia referências à Scream: que vão desde à escala de estrelas de grande porte pra serem descartadas logo no início - como Drew Barrymore, no filme original - à cenas de assassinato com serra elétrica, ou num labirinto assumidamente inspirado em O Iluminado, ou mesmo no chuveiro - cena interpretada por Jamie Lee Curtis, filha da Janet Leigh de Psicose [avisando pra não interpretarem essas indicações como spoiler, pois alguns sobrevivem a essas cenas]. Os personagens, por sua vez, beiram o absurdo; e é proposital. E, talvez, seja esse ponto com o qual muitos expectadores não conseguiram lidar.


Da mesma forma que Scream buscou refletir sobre a criação de jovens psicopatas pela sociedade americana - usando, em cada filme, a violência, os podres de Hollywood e as mídias sociais como embasamento - Scream Queens retoma boa parte dessas críticas, iniciando-as justamente em 1995, foco do primeiro filme. A cena de abertura nos traz um vislumbre da superficialidade dos membros de irmandades universitárias [e dos jovens daquela geração, de modo geral], quando estas já nos são apresentadas abandonando uma colega em trabalho de parto para curtir a musica favorita delas (!!).

Marca registrada de Ryan Murphy, criador da série, as críticas são provocativas e contextualizadas. Na cena em questão, temos o perfeito vislumbre do simulacro de vida que levam os seres retratados; estes representam a ineficácia da forma como o amor é representado nas músicas, quando optam por consumir uma mensagem que poderia ser vivida. As meninas foram celebrar a vida com uma música deixando pra trás, justamente, um nascimento. Isso é uma perfeita amostra dos males de uma sociedade voltada ao consumo que só completa uma já anunciada [fora da série] falta de sentido no mundo. E não se abstenha de experimentar essa crítica porque eu estou me referindo ao nosso mundo.


E tudo isso está longe de parar por aí. Essa irmandade gera dois frutos: Grace e Chanel, as protagonistas da séries. Antagonistas entre si, a primeira é idealista e apegada ao pai - Grace romantiza a irmandade Kappa Kappa Tau, da qual pertenceu a sua já falecida mãe -, enquanto a segunda é a presidente da Kappa, desligada dos pais, exceto financeiramente, Chanel é narcisista, racista, homofóbica - enfim, possui um desprezo por todo tipo de minoria. A presidente da KKT chega ao ponto de usar membros da irmandade como minions, extensões dela que usam números (Chanel #2, #3 e #5) no lugar dos nomes - os quais ela nunca se preocupou em saber. Por outro lado, a personagem se torna manipulável quando se trata do namorado, o igualmente narcisista e igualmente presidente [mas de outra irmandade] Chad Radwell, que é empoderado pelo machismo. O que agrava o caso.

O interessante, a partir daí é a forma que os criadores/roteiristas encontram para sustentar, nas performances dos personagens e nos diálogos, as suas críticas: eles são absurdamente sinceros. Sim, eles falam exatamente o que eles acham de cada situação. Pra se ter um exemplo, tem uma cena onde as meninas estão discutindo a entrada do primeiro membro homem do grupo - um rapaz gay (personagem de Nick Jonas) que, por esse motivo, corre o risco de ser expulso da irmandade de Chad [ressaltando que o presidente o aceita e trata como irmão] - ao invés de desconversarem a sua homofobia, uma delas o ridiculariza abertamente, enquanto a outra pensa na boa publicidade que a inclusão do rapaz na irmandade seria de boa publicidade pra ela. Ainda que tudo seja atenuado com um ótimo senso de humor e boas piadas, isso pode chocar alguns expectadores justamente por expôr os preconceitos que eles escondem por medo de serem execrados nos lugares públicos e nas redes sociais. E esse tipo de reflexão/reflexo incomoda muito.


Entre estas críticas e algumas mais didáticas - como uma cena em que as meninas refletem sobre abdicarem de sua nutrição para serem magras para os homens e acabam problematizando vários outros problemas do patriarcado -, a série ainda discute temas mais neutros em relação às minorias. Temos cenas onde estudantes se comportam como palhaços enquanto a reitora é entrevistada, para aparecerem na tv [beleza, Todo Mundo em Pânico já havia feito isso]; ou quando um dos personagens é amarrado numa pilastra em frente ao campus e, ao invés de ajudarem, os seus colegas riem e tiram fotos; tem também a cena em que os estudantes vão a uma festa numa casa abandonada com cadáveres de verdade para fotografá-los [retomando os temas da falta de sentido e da celebração da vidas]; e, claro, os famosos pedem-pra-morrer, parodiando personagens que agem de forma totalmente burra nos filmes de terror porque mal escritos/dirigidos. Os próprios figurantes são dirigidos para representarem essa superficialidade, atuando de forma extremamente estereotipada. Tais coisas podem passar despercebidas, caso você simplesmente opte por julgá-los maus atores. Mas com certeza a cena mais memorável nesse quesito foi a que o assassino “bate-papo” com a vítima no whatsapp, estando um diante do outro; a cena vai ainda mais além quando a vítima vai buscar o notebook pra tuitar que está morrendo.

Com isso, eu concluo que a superficialidade proposital do enredo representa muitas desconcertantes verdades, como as já descritas - entre tantas outras que dariam uma série de texto de tantos paradigmas problematizados. Diante disso, o negócio é sintonizar o nosso senso crítico com a abordagem absurda de um enredo que, curiosamente, abdicou da verosimilhança para ser verosímil, pra que, então, ele esteja livre pra mostrar o seu espetáculo. Dar à série a chance de falar e a si próprio a chance de aprender a língua dela - isso é muito enriquecedor.

Em tempo, é sempre bom lembrar que algumas críticas vêm em tamanho único. Então é sempre bom experimentar pra ver se lhe cabem.

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